Thursday, January 24, 2008

A teoria da "inculturação",

Díli, Timor-Leste 24/01/2008 16:20 (LUSA)
Temas: Política, Religião, Estado e Igreja (relação), Cristianismo
Pedro Rosa Mendes, da Agência Lusa



Díli, 24 Jan (Lusa) - A teoria da "inculturação", a que não é estranho o percurso do novo superior da Companhia de Jesus, Adolfo Nicolás, teve consequências na história da resistência timorense e do papel da Igreja sob a ocupação.

A relação entre a doutrina progressista católica, validada pela primeira vez pelos jesuítas em 1978, e a sustentação de uma identidade timorense é salientada por testemunhos de jesuítas em Díli e por historiadores como o francês Frédéric Durand.

Timor-Leste foi o primeiro território em que a aplicação prática da inculturação veio a ter um impacto concreto, ao inspirar o uso litúrgico da língua tétum por oposição ao indonésio.

"Se a liturgia fosse em indonésio, criar-se-ia repugnância e tensão", após a ocupação e a proibição da língua portuguesa, recordou à Agência Lusa o jesuíta João Felgueiras, de 71 anos, em Timor-Leste desde 1971.

"O uso do tétum na liturgia foi uma bandeira política e a igreja, através da sua acção e da sua influência, alimentou o movimento de libertação", acrescentou o sacerdote, um dos 18 jesuítas no país.

A teoria da inculturação tem antecedentes próximos no Concílio Vaticano II (1962-1965), "com um primeiro vento de tolerância em relação às igrejas orientais", como explica o historiador francês Frédéric Durand.

O primeiro resultado da nova tendência foi o "decreto sobre as Igrejas orientais católicas", que pôs termo à chamada "querela dos ritos", desencadeada na China no século XVII e que esteve na origem da dissolução da Companhia de Jesus entre 1773 e 1815.

O Concílio Vaticano II defendeu o interesse de "salvaguardar na sua integridade as tradições de cada igreja particular ou rito" e de "adaptar o seu modo de vida às necessidades dos tempos e dos lugares".

Dez anos depois, em 1974, o teólogo suíço W.Bühlmann consolidou a constatação de que a igreja católica estava no alvor de uma terceira era: depois de uma igreja "oriental" fundadora e de uma igreja "latina", chegava a vez de uma Terceira-Igreja, uma Igreja do Terceiro Mundo.

"Estas reflexões suscitaram a emergência do conceito de 'inculturação', que viria a ter um impacto forte em Timor", conta Frédéric Durand, autor de um livro sobre catolicismo e protestantismo na ilha de Timor.

A nova aproximação da Igreja considera que a "inculturação" é "a incarnação da vida e da mensagem cristãs num contexto cultural concreto".

Segundo essa teoria, é preciso isolar na mensagem de Jesus Cristo aquilo que é próprio de um local e tempo específicos, a Palestina de há dois mil anos.

Só esse esforço de separação permite guardar dos evangelhos o que é intrinsecamente "espiritual", para depois identificar o que, em cada cultura e sociedade, são os valores e traços passíveis de serem "revelações naturais locais".

O Papa João Paulo II usou este conceito a partir de 1979.

Em Timor-Leste, o princípio da inculturação permitiu defender o uso litúrgico do tétum.

João Felgueiras e outro jesuíta português que viveu a ocupação de Timor-Leste, José Alves Martins, afirmaram à Lusa que a Congregação do Culto Divino, em Roma, aprovou a proposta de monsenhor Martinho da Costa Lopes para o uso litúrgico do tétum.

"Conseguimos isso em pouco tempo, depois de termos dinamizado a tradução do cânone da missa", contou o padre José Alves Martins, sorrindo ao referir as "boas influências" da Companhia de Jesus no Vaticano.

"A Santa Sé nem sequer exigiu o tempo de experiência, privilégio que a língua indonésia não teve", acrescentou.

Os dois jesuítas referiram, aliás, "o apoio amigo do secretário da Nunciatura em Jacarta" para a adopção do missal em tétum.

"A partir de 1986, a teoria da inculturação permitiu também aumentar o boicote pelos sacerdotes da diocese de Díli aos cursos de ideologia Pancasila, os 5 princípios fundadores do Estado indonésio", sublinha Frédéric Durand.

O historiador francês refere também a importância que teve o respeito da igreja católica timorense dos antigos cultos locais, em oposição ao monoteísmo imposto pela Indonésia.

Frédéric Durand recorda, a propósito, as cerimónias realizadas pelo bispo Xímenes Belo nas duas montanhas sagradas timorenses, no Matebian em 1993 e no Ramelau em 1997.

Essa cerimónias destinavam-se a harmonizar as tradições animistas, do culto dos mortos e dos objectos "lulik", com a fé católica - colocando "Nossa Senhora, Rainha de Timor", no "pico dos antepassados".

Olhando para trás, João Felgueiras e José Alves Martins podem avaliar a contribuição dos jesuítas e de uma doutrina cara a superiores da Companhia de Jesus como Pedro Arrupe (1965-1983) e o seu herdeiro directo, Adolfo Nicolás.

"Assegurámos a maturação de uma identidade timorense e a continuidade histórica do que havia antes da ocupação", resumem os dois sacerdotes.



Lusa/fim

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